Desbravando a Loucura

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Interpretações de loucura em Michael Foucalt

Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta aterritorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (Foucault, 1972, p. 12).
A loucura passa a ser tema principal da literatura, do teatro, enfim, das artes como um todo. Neste espaço, o louco não é visto mais como uma figura boba, e sim como o detentor da verdade (Foucault, 1972, p. 14).
Na segunda metade do século XV, com as guerras e as pestes assolando as cidades sem controle, o tema da morte reina e ninguém escapa. Entretanto, nos últimos anos do século, a loucura substitui a morte, e é esta ascensão que indicará que o mundo está mais próximo do que se pensa do seu desastre.
Inúmeras imagens, telas, quadros, com faces enigmáticas de difíceis compreensões, surgem. A imagem dá margem a diferentes interpretações. Daí o fato de ela e a palavra expressarem diferentes significados. Essas imagens surgem através dos sonhos, e por isso exercem tanto fascínio através dos tempos. A loucura representada é vista como um saber obscuro, que esconde segredos e que por isso mesmo precisam ser desvendados.
Na Idade Média, a loucura divide sua soberania com mais doze fraquezas da alma humana, como luxúria, discórdia e outras. No entanto, na Renascença, a loucura passa a dominar todas as fraquezas humanas. Isso porque a loucura é visível, não esconde nada, não obscurece; ela atrai as pessoas pelo fato de conseguir manter uma dominação sobre as coisas.
A loucura faz um sarcasmo do saber. Segundo Erasmo de Rottterdam (apud Foucault, 1972, p. 24), pelo fato de a loucura ser uma fraqueza humana, “ela é um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo”. A partir do momento que o homem se apega a si mesmo, ele se ilude, surgindo, então, o primeiro sinal da loucura. A loucura aparece como uma suposição para esta ignorância humana. Ela não diz respeito à realidade do mundo, mas sim à realidade que o homem acredita existir.
No século XV, a loucura aparece como sátira moral na Literatura e Filosofia. O mundo é facilmente dominado pela loucura. Tanto Bosh quanto Brueghel (apud Foucault, 1972, p. 25) tinham uma visão muito próxima da loucura – levando-os a fazer uma reflexão moral a seu respeito, isto porque ela estaria ligada ao homem, com suas fraquezas, sonhos e ambições (Foucault, 1972, p. 24). Já Erasmo (apud Foucault, 1972, p. 26) via a loucura estabelecendo uma certa distância, distância esta que permitia uma visão mais crítica. (Foucault, 1972, p. 26) As pinturas de Bosh (apud Foucault, 1972, p. 26) são pinturas que mostram e revelam a essência dos homens, o homem visto através do seu interior. Com o silêncio das imagens, a loucura desenvolve seus poderes.
Erasmo, com sua tradição humanista, afirma a existência da loucura através do discurso. Este discurso seria expresso através da consciência crítica dos homens. Com isso, “o homem era confrontado com a sua verdade moral, com as regras próprias à sua natureza e à sua verdade”. (Foucault, 1972, p. 27)
Por conseqüência, enquanto esta visão crítica ia fortalecendo-se, a visão trágica ia enfraquecendo-se, embora nunca tenha deixado de existir – como se pode comprovar nas obras de Sade, Goya e Freud. Esta visão crítica ganhava força através da racionalidade, ao passo que a visão trágica se enfraquecia devido à carga emocional empregada. Dessa forma, a razão se tornou predominante sobre a emoção.
A loucura, até o final do século XVIII, teve existência relacionada com a razão. Elas estavam extremamente implicadas. Esta se integrava na razão podendo até ser uma forma de sua manifestação. A loucura levava à sabedoria, e a razão toma consciência da loucura. A loucura é a “força viva e secreta da razão” para os renascentistas, por exemplo. (Foucault, 1972, p. 31)
No século XVII, em Cervantes e Shakespeare (apud Foucault, 1972, p. 39), a loucura sempre ocupa um lugar extremo no sentido de que ela não tem recurso. É uma loucura que opera sobre a morte, que precisa da “misericórdia divina” (Foucault, 1972, p. 39). No entanto, a loucura ainda triunfará, pois a morte não trouxe a paz.
Após abandonar estas regiões em que estava situada, a loucura passa a ser relacionada com a aparência de um crime. Sua seriedade dramática só existe na medida em que se trata de um falso drama. “A partir dela, a ilusão se desfaz” (Foucault, 1972, p. 40). Esta é a troca do real pelo ilusório.
A loucura é capaz de levar as pessoas a desenvolver uma falsa percepção dos sentidos, levando a crer que determinadas partes do corpo não fazem parte do corpo do insano. Assim, é importante ter consciência do conceito de loucura e se o indivíduo é ou não louco, não bastando ter um pensamento lógico e coerente se ele não acredita que é são.
Descartes, através da sua dúvida metódica e de seu subjetivismo transcendental, mostra a razão pura como meio de se chegar à verdade, alocando a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de erro (Foucault, 1972, p. 45). Para ele, um ser que cogita (pensa) não pode estar louco. Dessa forma, para ele, que submete tudo à dúvida, até mesmo os próprios sentidos, chega à conclusão de que não é possível duvidar do pensamento: “Penso, logo existo”. Assim, se duvido, não posso estar louco, pois duvidaria de minha própria loucura. Esta dúvida metódica fez com que na dialética razão-não-razão (século XVII) a vencedora fosse a razão.
A partir do século XVIII, a loucura está fora da interlocução com a razão. Por isso, o homem da contemporaneidade deixou de se comunicar com o louco. Assim, a ciência a transformou numa patologia. Para ela, quem percebia o verdadeiro, a essência das coisas, estava longe de ser um insensato. E o louco era desprovido destes atributos. A exclusão topográfica foi substituída pela exclusão lógica. Para exercer sua cidadania no seu território, só há duas alternativas ao louco: zanzar pelos rios e mares ou ser confinado sob grade. E agora, de explosão expressiva na Literatura, passa a ser silenciado na sua voz inefável. Não tem o que dizer.
O século XVII chega com a criação de uma quantidade bastante razoável de casas de internamento. Muitas pessoas são enviadas para estas instituições. Assim, a loucura podia ser mais bem percebida através da quantidade de internamentos. Nestes locais, os insanos tinham péssimas condições de vida, viviam em condições subumanas, em locais sujos, frios, lotados de gente e sem comida. Para que fosse internado, o insano não dependia da idade, nem do sexo, nem se seu caso fosse curável ou não.
Era dever dos hospitais dar não apenas atendimento médico aos insanos, mas também ter o direito de decidir por eles e julgá-los, quando necessário. Logo no início, a instância da ordem era ligada ao poder real. Aos poucos, este poder foi concedido à burguesia.
Pode-se então concluir que, para o louco, há exclusão topográfica, exclusão lógica e exclusão política. Sem chão, sem razão e sem cidadania. Na Inglaterra, para manter as casas de correção, a população ajudava com donativos, embora estes não surtissem efeito. Algumas empresas privadas passaram então a ter o domínio sem ter de pedir permissão para abrir mais casas.
No fim do século XVIII há um total de 126 (cento e vinte e seis) casas de correção na Inglaterra. Anos depois espalham-se por toda a Europa. A própria população ajuda a isolar os insanos, segregando-os e atribuindo-os uma nova pátria. O internamento aparece como algo desumano, onde revela que os insanos não podiam responder por si mesmos – já que, por serem loucos, não tinham consciência dos seus atos; eram predestinados.
Segundo o Protestantismo de Lutero, as obras de caridade levavam à salvação porque com elas todos os pecados podiam ser redimidos. As instituições que recebiam estas doações (porque elas não iam para o clero) tinham administradores que geravam as finanças. Estas instituições representavam um castigo moral da miséria, porque esta era considerada como uma desordem quanto à ordem estabelecida. Esta filosofia protestante tinha a intenção de colocar o trabalho num local rivilegiado: o trabalho como sendo fundamentado e comprovado pela fé.
Esta concepção foi tão disseminada que a Igreja Católica logo se viu impelida a aplicar os conceitos protestantes a sua religião. Assim, esta adotou uma percepção da miséria já desenvolvida pelo Protestantismo, dividindo os miseráveis em dois grupos:
– Região do bem e da pobreza submissa, que aceita o internamento e encontra o seu descanso.
– Região do mal e pobreza insubmissa, que recusa o internamento. “Uns seriam filhos de Deus enquanto outros do demônio” (Foucault, 1972, p. 61).

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