Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais
aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à
imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua
terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se
limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca
será. Dessa forma, a água simboliza esta aterritorialidade com a qual a
loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha
chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (Foucault, 1972, p.
12).
A loucura passa a ser tema principal da literatura, do
teatro, enfim, das artes como um todo. Neste espaço, o louco não é visto
mais como uma figura boba, e sim como o detentor da verdade (Foucault,
1972, p. 14).
Na segunda metade do século XV, com as guerras e as
pestes assolando as cidades sem controle, o tema da morte reina e
ninguém escapa. Entretanto, nos últimos anos do século, a loucura
substitui a morte, e é esta ascensão que indicará que o mundo está mais
próximo do que se pensa do seu desastre.
Inúmeras imagens, telas,
quadros, com faces enigmáticas de difíceis compreensões, surgem. A
imagem dá margem a diferentes interpretações. Daí o fato de ela e a
palavra expressarem diferentes significados. Essas imagens surgem
através dos sonhos, e por isso exercem tanto fascínio através dos
tempos. A loucura representada é vista como um saber obscuro, que
esconde segredos e que por isso mesmo precisam ser desvendados.
Na
Idade Média, a loucura divide sua soberania com mais doze fraquezas da
alma humana, como luxúria, discórdia e outras. No entanto, na
Renascença, a loucura passa a dominar todas as fraquezas humanas. Isso
porque a loucura é visível, não esconde nada, não obscurece; ela atrai
as pessoas pelo fato de conseguir manter uma dominação sobre as coisas.
A
loucura faz um sarcasmo do saber. Segundo Erasmo de Rottterdam (apud
Foucault, 1972, p. 24), pelo fato de a loucura ser uma fraqueza humana,
“ela é um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo”. A
partir do momento que o homem se apega a si mesmo, ele se ilude,
surgindo, então, o primeiro sinal da loucura. A loucura aparece como uma
suposição para esta ignorância humana. Ela não diz respeito à realidade
do mundo, mas sim à realidade que o homem acredita existir.
No
século XV, a loucura aparece como sátira moral na Literatura e
Filosofia. O mundo é facilmente dominado pela loucura. Tanto Bosh quanto
Brueghel (apud Foucault, 1972, p. 25) tinham uma visão muito próxima da
loucura – levando-os a fazer uma reflexão moral a seu respeito, isto
porque ela estaria ligada ao homem, com suas fraquezas, sonhos e
ambições (Foucault, 1972, p. 24). Já Erasmo (apud Foucault, 1972, p. 26)
via a loucura estabelecendo uma certa distância, distância esta que
permitia uma visão mais crítica. (Foucault, 1972, p. 26) As pinturas de
Bosh (apud Foucault, 1972, p. 26) são pinturas que mostram e revelam a
essência dos homens, o homem visto através do seu interior. Com o
silêncio das imagens, a loucura desenvolve seus poderes.
Erasmo,
com sua tradição humanista, afirma a existência da loucura através do
discurso. Este discurso seria expresso através da consciência crítica
dos homens. Com isso, “o homem era confrontado com a sua verdade moral,
com as regras próprias à sua natureza e à sua verdade”. (Foucault, 1972,
p. 27)
Por conseqüência, enquanto esta visão crítica ia
fortalecendo-se, a visão trágica ia enfraquecendo-se, embora nunca tenha
deixado de existir – como se pode comprovar nas obras de Sade, Goya e
Freud. Esta visão crítica ganhava força através da racionalidade, ao
passo que a visão trágica se enfraquecia devido à carga emocional
empregada. Dessa forma, a razão se tornou predominante sobre a emoção.
A
loucura, até o final do século XVIII, teve existência relacionada com a
razão. Elas estavam extremamente implicadas. Esta se integrava na razão
podendo até ser uma forma de sua manifestação. A loucura levava à
sabedoria, e a razão toma consciência da loucura. A loucura é a “força
viva e secreta da razão” para os renascentistas, por exemplo. (Foucault,
1972, p. 31)
No século XVII, em Cervantes e Shakespeare (apud
Foucault, 1972, p. 39), a loucura sempre ocupa um lugar extremo no
sentido de que ela não tem recurso. É uma loucura que opera sobre a
morte, que precisa da “misericórdia divina” (Foucault, 1972, p. 39). No
entanto, a loucura ainda triunfará, pois a morte não trouxe a paz.
Após
abandonar estas regiões em que estava situada, a loucura passa a ser
relacionada com a aparência de um crime. Sua seriedade dramática só
existe na medida em que se trata de um falso drama. “A partir dela, a
ilusão se desfaz” (Foucault, 1972, p. 40). Esta é a troca do real pelo
ilusório.
A loucura é capaz de levar as pessoas a desenvolver uma
falsa percepção dos sentidos, levando a crer que determinadas partes do
corpo não fazem parte do corpo do insano. Assim, é importante ter
consciência do conceito de loucura e se o indivíduo é ou não louco, não
bastando ter um pensamento lógico e coerente se ele não acredita que é
são.
Descartes, através da sua dúvida metódica e de seu
subjetivismo transcendental, mostra a razão pura como meio de se chegar à
verdade, alocando a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de
erro (Foucault, 1972, p. 45). Para ele, um ser que cogita (pensa) não
pode estar louco. Dessa forma, para ele, que submete tudo à dúvida, até
mesmo os próprios sentidos, chega à conclusão de que não é possível
duvidar do pensamento: “Penso, logo existo”. Assim, se duvido, não posso
estar louco, pois duvidaria de minha própria loucura. Esta dúvida
metódica fez com que na dialética razão-não-razão (século XVII) a
vencedora fosse a razão.
A partir do século XVIII, a loucura está
fora da interlocução com a razão. Por isso, o homem da contemporaneidade
deixou de se comunicar com o louco. Assim, a ciência a transformou numa
patologia. Para ela, quem percebia o verdadeiro, a essência das coisas,
estava longe de ser um insensato. E o louco era desprovido destes
atributos. A exclusão topográfica foi substituída pela exclusão lógica.
Para exercer sua cidadania no seu território, só há duas alternativas ao
louco: zanzar pelos rios e mares ou ser confinado sob grade. E agora,
de explosão expressiva na Literatura, passa a ser silenciado na sua voz
inefável. Não tem o que dizer.
O século XVII chega com a criação
de uma quantidade bastante razoável de casas de internamento. Muitas
pessoas são enviadas para estas instituições. Assim, a loucura podia ser
mais bem percebida através da quantidade de internamentos. Nestes
locais, os insanos tinham péssimas condições de vida, viviam em
condições subumanas, em locais sujos, frios, lotados de gente e sem
comida. Para que fosse internado, o insano não dependia da idade, nem do
sexo, nem se seu caso fosse curável ou não.
Era dever dos
hospitais dar não apenas atendimento médico aos insanos, mas também ter o
direito de decidir por eles e julgá-los, quando necessário. Logo no
início, a instância da ordem era ligada ao poder real. Aos poucos, este
poder foi concedido à burguesia.
Pode-se então concluir que, para o
louco, há exclusão topográfica, exclusão lógica e exclusão política.
Sem chão, sem razão e sem cidadania. Na Inglaterra, para manter as casas
de correção, a população ajudava com donativos, embora estes não
surtissem efeito. Algumas empresas privadas passaram então a ter o
domínio sem ter de pedir permissão para abrir mais casas.
No fim
do século XVIII há um total de 126 (cento e vinte e seis) casas de
correção na Inglaterra. Anos depois espalham-se por toda a Europa. A
própria população ajuda a isolar os insanos, segregando-os e
atribuindo-os uma nova pátria. O internamento aparece como algo
desumano, onde revela que os insanos não podiam responder por si mesmos –
já que, por serem loucos, não tinham consciência dos seus atos; eram
predestinados.
Segundo o Protestantismo de Lutero, as obras de
caridade levavam à salvação porque com elas todos os pecados podiam ser
redimidos. As instituições que recebiam estas doações (porque elas não
iam para o clero) tinham administradores que geravam as finanças. Estas
instituições representavam um castigo moral da miséria, porque esta era
considerada como uma desordem quanto à ordem estabelecida. Esta
filosofia protestante tinha a intenção de colocar o trabalho num local
rivilegiado: o trabalho como sendo fundamentado e comprovado pela fé.
Esta
concepção foi tão disseminada que a Igreja Católica logo se viu
impelida a aplicar os conceitos protestantes a sua religião. Assim, esta
adotou uma percepção da miséria já desenvolvida pelo Protestantismo,
dividindo os miseráveis em dois grupos:
– Região do bem e da pobreza submissa, que aceita o internamento e encontra o seu descanso.
–
Região do mal e pobreza insubmissa, que recusa o internamento. “Uns
seriam filhos de Deus enquanto outros do demônio” (Foucault, 1972, p.
61).
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